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José Antonio da Silva, apresentação:

Foi durante um almoço de confraternização de final de ano entre amigos e colegas do mercado da arte que surgiu a ideia de orga- nizar uma exposição individual do artista José Antonio da Silva. Ao longo da conversa foram levantados nomes que mereceriam um novo olhar do mercado e cujo lugar na história da arte brasileira de- veria ser revisitado. Eis que surge, dentre os nomes mencionados, José Antonio da Silva, artista que, na opinião de todos à mesa, me- recia nova carga de visibilidade.

Notado pela primeira vez em 1946 por um grupo de intelec- tuais durante uma mostra coletiva no interior de São Paulo, em São José do Rio Preto, José Antonio da Silva teve longa trajetória como pintor e desenhista e já expôs seus trabalhos em importantes insti- tuições nacionais, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu de Arte de São Paulo (masp), bem como em eventos interna- cionais de grande porte, sendo a Bienal de Veneza um deles. Além disso, contribuiu com o pensamento nacional, de maneira sem igual, apresentando obras repletas de denúncias sociais contunden- tes e retratando temas que são até hoje atuais, como o desmata- mento, a queimada de nossas florestas e o avanço desenfreado da agropecuária no país.

É certo que José Antonio da Silva merece figurar em uma exposição de peso, que dê conta da variedade de sua produção e da riqueza de sua imaginação. Uma bela e impactante mostra, que exponha obras de sua melhor fase, para que uma nova gera- ção de colecionadores possa admirar e se aprofundar no universo mágico deste pintor que retratou tão bem o mundo que enxergava diante de si.

Ao apresentar lado a lado nossas coleções de obras do artista, acreditamos ter reunido um conjunto significativo e representativo do que há de mais momentoso em sua produção, desenvolvida entre as décadas de 1940 e 1970. Este catálogo, elaborado com muito carinho e cuidado, pretende servir como referência e regis- tro do importante legado artístico de José Antonio da Silva.

Cacá Nóbrega e Paulo Kuczynski.

O esplendor da vida rural:

A obra pictórica de José Antonio da Silva desenvolveu-se ao longo da acelerada transição que ocorria entre o mundo rural e o mundo urbano no interior paulista no período do pós-Segunda Guerra Mundial. Tal ambiente está entranhado em suas experiências afetivas, formativas e existenciais, das quais nunca se afastou. Foi a força pictórica de suas telas que primeiro suscitou o interesse de intelectuais da esfera esclarecida nos problemas da arte, pois sem uma sensibilidade moderna, urbana, não se poderia apreciar e ad- mirar verdadeiramente a pintura do artista. A sua “descoberta”, por assim dizer, se deve a três intelectuais afeitos ao modernismo paulistano: Paulo Mendes de Almeida, Lourival Gomes Machado e João Cruz Costa. Não fosse assim, provavelmente permanece- ria desconhecido ou restrito à simplória condição de artista local. A vida rural, da qual era pintor, estava condenada ao desapareci- mento. Aos poucos, ela era absorvida pela expansão urbana, ou semiurbana, não só pelo deslocamento do indivíduo em busca de outros horizontes, mas pela difusão inexorável dos novos modos de vida — o chamado “progresso”. José Antonio da Silva deu aos aspectos dessa vida caipira, que pareciam limitados e até desdenhados, uma dimensão artística extraordinária.

É com a modernidade que os chamados “artistas primitivos” adquirem valor, tornam-se reconhecidos, apreciados, e são inseridos na História da Arte, como foi o caso do famoso Douanier Rousseau, pintor tão admirado por Picasso. E tal como no expressionismo, o dito “primitivo” só vale se for autêntico. É algo que não se pode adulterar, copiar ou falsificar; a extrema convicção é que confere valor à obra. Explica-se assim a admiração que José Antonio tinha por Van Gogh, um dos seus pintores favoritos. Não por acaso, sua apreciação ocorre concomitantemente com a de Volpi, e pelos mesmos indivíduos, o mesmo grupo de intelectuais e colecionadores, alguns ativos ainda hoje — convergência, como tantas outras, entre moderno e “primitivo”.

A pintura de José Antonio da Silva é um modo de representação que corresponde à simplicidade da vida. Entretanto, não é uma pintura de simplificação. Nela, o mundo está em constante ação, vivo, em movimento circular. Em suas telas, uma cena sucede a outra, quase sem interrupção. É o estoque visual da sua existência rural que o faz e o realiza pintor. Não é somente a observação acurada do assunto, vinda de dentro, mas as soluções originais e imaginativas que surpreendem em seus trabalhos. Cada uma de suas telas se coloca inteiramente para fora, direta, imediata. A partir daí surge um mundo vivo, animado, variado, do qual José Antonio foi um atento observador, comentador e pre-servador. O modo de vida, os hábitos, a paisagem, o trabalho, a religiosidade, todos esses elementos deixaram uma impressão em sua obra. Até em seu nome se encontra a verdade de sua pintura, um nome genuinamente caipira, paulista — e brasileiro. Pin- tou seu mundo, aquele que desaparecia diante da expansão que o progresso reclamava para si: a casa de pau a pique, o carro de boi, as festas populares, a lavoura primitiva e tudo o mais que era chamado de “roça”. José Antonio da Silva pintou de tudo; nem um só dos gêneros clássicos escapou de sua obra. Cada um de seus quadros é uma unidade total, seja paisagem, natureza-morta, retrato. Ali circunscreveu seu mundo, estabeleceu um território de domínio que o fez estar à vontade em tudo o que pintou. Seus meios eram limitados, mas deles extraiu o máximo. Enquadrava inteiramente o assunto, sempre com a intenção de trazer tudo para o primeiro plano, para oferecer ao espectador a instantaneidade imediata e total da cena, sem perder nada do seu sabor.

A vida cotidiana popular é a que cabe em sua pintura; não pretendia ir além. O artista sabia abrir novos rumos e sabia se repetir, sem entediar. O mundo surge ininterrupto. Em suas telas, trans- parece uma animação diversa da vida insossa da metrópole, mais variada e, dir-se-ia, divertida. José Antonio da Silva conseguia passar de temas comuns, como o retrato de um vaso de flores, para assuntos dos quais foi o único a registrar; mas tanto um quanto os outros trazidos a partir da mesma visão de mundo é o que caracteriza toda a sua pintura. Isto é, não se trata de mero registro, mas de recriação da existência vivida. Não satisfeito em ser pintor, também se dedicou à escrita. E é esse misto de singeleza e ambição que caracteriza a obra e a persona de José Antonio da Silva e está em seus livros e pinturas. “Eu sou um pintor da vida rural”; a existência do artista estava no que ele pintava. Pintor, sim, mas sua obra é também a poesia da vida rural.

Os animais, como não poderia deixar de ser, estão presentes e se repetem em várias de suas telas; aqueles característicos do ambiente rural: o boi (Os bois, 1952), o cachorro, o urubu onipresente e a cobra ameaçadora (Cobra e cachorro, 1949). A vida se passa nas poucas casas, ínfimo núcleo urbano intermediário entre a cidade e a área rural. As festas (Festa de São João, 1960), o circo (No circo, 1960) e a fé religiosa (O milagre de Santa Genoveva, 1949) convivem lado a lado com a labuta cotidiana (Ordenhar, 1948; O lenhador, 1953; A boiada, 1956). Ora bucólicas ora líricas, as representações nas telas não concedem espaço para a nostalgia. Às vezes, uma paisagem tão simples, a mata e um rio (Sem título, 1948), exala uma atmosfera mágica como se transmitisse a vida íntima da natureza. Em outras, a trágica disputa entre a floresta e a lavoura, o desmatamento (A derrubada, 1949), ainda manual, para dar lugar ao plantio (Cafezal, 1971; Milharal, 1961) — estão aí os momentos significativos da vida caipira que José Antonio soube conferir esplendor.

 

De todo modo, “a vida rural”, da qual era o pintor, estava condenada ao desaparecimento. É possível afirmar que, de certa forma, a pintura de José Antonio da Silva floresceu com o fim da cultura caipira, sobre a qual ela também é um documento verídico — mesmo que o artista não percebesse como necessário registrar e preservar, foi o que, afinal, aconteceu.

 

José Antonio da Silva começou a pintar já adulto, a partir de uma motivação muito provavelmente intuitiva (na falta de uma educação artística) e, ainda assim, construiu uma obra incomparável. Seus meios eram limitados, mas deles extraiu o máximo. Enquadrava inteiramente o assunto e é a partir dessa inteireza que começa a observar os detalhes dispostos e figurados com cuidado.

Tal combinação ímpar é uma das características indistinguíveis de sua obra; seja uma paisagem, um vaso de flores ou um retrato. Sua visão de mundo coincidia com os gêneros tradicionais e não o contrário. Nada escapava ao artista e ainda assim ele repetia o mesmo tema diversas vezes, em variações imprevistas — parte da vocação de pintor, que assumiu até exageradamente como afirmam alguns; ele próprio abusando de uma falsa modéstia. Como pintor reconhecido, podia expandir e exibir seu ego à vontade, sem a timidez natural do caipira.

José Antonio da Silva se disse “pintor da vida rural”, o que de fato foi, sem saber que foi ainda mais longe, muito além das circunstâncias que porventura o teriam limitado — e o olhar moderno percebeu nesse artista a inventividade plástica da grande pintura.

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