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O esplendor da vida rural:

A obra pictórica de José Antonio da Silva desenvolveu-se ao longo da acelerada transição que ocorria entre o mundo rural e o mundo urbano no interior paulista no período do pós-Segunda Guerra Mundial. Tal ambiente está entranhado em suas experiências afetivas, formativas e existenciais, das quais nunca se afastou. Foi a força pictórica de suas telas que primeiro suscitou o interesse de intelectuais da esfera esclarecida nos problemas da arte, pois sem uma sensibilidade moderna, urbana, não se poderia apreciar e ad- mirar verdadeiramente a pintura do artista. A sua “descoberta”, por assim dizer, se deve a três intelectuais afeitos ao modernismo paulistano: Paulo Mendes de Almeida, Lourival Gomes Machado e João Cruz Costa. Não fosse assim, provavelmente permanece- ria desconhecido ou restrito à simplória condição de artista local. A vida rural, da qual era pintor, estava condenada ao desapareci- mento. Aos poucos, ela era absorvida pela expansão urbana, ou semiurbana, não só pelo deslocamento do indivíduo em busca de outros horizontes, mas pela difusão inexorável dos novos modos de vida — o chamado “progresso”. José Antonio da Silva deu aos aspectos dessa vida caipira, que pareciam limitados e até desdenhados, uma dimensão artística extraordinária.

É com a modernidade que os chamados “artistas primitivos” adquirem valor, tornam-se reconhecidos, apreciados, e são inseridos na História da Arte, como foi o caso do famoso Douanier Rousseau, pintor tão admirado por Picasso. E tal como no expressionismo, o dito “primitivo” só vale se for autêntico. É algo que não se pode adulterar, copiar ou falsificar; a extrema convicção é que confere valor à obra. Explica-se assim a admiração que José Antonio tinha por Van Gogh, um dos seus pintores favoritos. Não por acaso, sua apreciação ocorre concomitantemente com a de Volpi, e pelos mesmos indivíduos, o mesmo grupo de intelectuais e colecionadores, alguns ativos ainda hoje — convergência, como tantas outras, entre moderno e “primitivo”.

A pintura de José Antonio da Silva é um modo de representação que corresponde à simplicidade da vida. Entretanto, não é uma pintura de simplificação. Nela, o mundo está em constante ação, vivo, em movimento circular. Em suas telas, uma cena sucede a outra, quase sem interrupção. É o estoque visual da sua existência rural que o faz e o realiza pintor. Não é somente a observação acurada do assunto, vinda de dentro, mas as soluções originais e imaginativas que surpreendem em seus trabalhos. Cada uma de suas telas se coloca inteiramente para fora, direta, imediata. A partir daí surge um mundo vivo, animado, variado, do qual José Antonio foi um atento observador, comentador e pre-servador. O modo de vida, os hábitos, a paisagem, o trabalho, a religiosidade, todos esses elementos deixaram uma impressão em sua obra. Até em seu nome se encontra a verdade de sua pintura, um nome genuinamente caipira, paulista — e brasileiro. Pin- tou seu mundo, aquele que desaparecia diante da expansão que o progresso reclamava para si: a casa de pau a pique, o carro de boi, as festas populares, a lavoura primitiva e tudo o mais que era chamado de “roça”. José Antonio da Silva pintou de tudo; nem um só dos gêneros clássicos escapou de sua obra. Cada um de seus quadros é uma unidade total, seja paisagem, natureza-morta, retrato. Ali circunscreveu seu mundo, estabeleceu um território de domínio que o fez estar à vontade em tudo o que pintou. Seus meios eram limitados, mas deles extraiu o máximo. Enquadrava inteiramente o assunto, sempre com a intenção de trazer tudo para o primeiro plano, para oferecer ao espectador a instantaneidade imediata e total da cena, sem perder nada do seu sabor.

A vida cotidiana popular é a que cabe em sua pintura; não pretendia ir além. O artista sabia abrir novos rumos e sabia se repetir, sem entediar. O mundo surge ininterrupto. Em suas telas, trans- parece uma animação diversa da vida insossa da metrópole, mais variada e, dir-se-ia, divertida. José Antonio da Silva conseguia passar de temas comuns, como o retrato de um vaso de flores, para assuntos dos quais foi o único a registrar; mas tanto um quanto os outros trazidos a partir da mesma visão de mundo é o que caracteriza toda a sua pintura. Isto é, não se trata de mero registro, mas de recriação da existência vivida. Não satisfeito em ser pintor, também se dedicou à escrita. E é esse misto de singeleza e ambição que caracteriza a obra e a persona de José Antonio da Silva e está em seus livros e pinturas. “Eu sou um pintor da vida rural”; a existência do artista estava no que ele pintava. Pintor, sim, mas sua obra é também a poesia da vida rural.

Os animais, como não poderia deixar de ser, estão presentes e se repetem em várias de suas telas; aqueles característicos do ambiente rural: o boi (Os bois, 1952), o cachorro, o urubu onipresente e a cobra ameaçadora (Cobra e cachorro, 1949). A vida se passa nas poucas casas, ínfimo núcleo urbano intermediário entre a cidade e a área rural. As festas (Festa de São João, 1960), o circo (No circo, 1960) e a fé religiosa (O milagre de Santa Genoveva, 1949) convivem lado a lado com a labuta cotidiana (Ordenhar, 1948; O lenhador, 1953; A boiada, 1956). Ora bucólicas ora líricas, as representações nas telas não concedem espaço para a nostalgia. Às vezes, uma paisagem tão simples, a mata e um rio (Sem título, 1948), exala uma atmosfera mágica como se transmitisse a vida íntima da natureza. Em outras, a trágica disputa entre a floresta e a lavoura, o desmatamento (A derrubada, 1949), ainda manual, para dar lugar ao plantio (Cafezal, 1971; Milharal, 1961) — estão aí os momentos significativos da vida caipira que José Antonio soube conferir esplendor.

 

De todo modo, “a vida rural”, da qual era o pintor, estava condenada ao desaparecimento. É possível afirmar que, de certa forma, a pintura de José Antonio da Silva floresceu com o fim da cultura caipira, sobre a qual ela também é um documento verídico — mesmo que o artista não percebesse como necessário registrar e preservar, foi o que, afinal, aconteceu.

 

José Antonio da Silva começou a pintar já adulto, a partir de uma motivação muito provavelmente intuitiva (na falta de uma educação artística) e, ainda assim, construiu uma obra incomparável. Seus meios eram limitados, mas deles extraiu o máximo. Enquadrava inteiramente o assunto e é a partir dessa inteireza que começa a observar os detalhes dispostos e figurados com cuidado.

Tal combinação ímpar é uma das características indistinguíveis de sua obra; seja uma paisagem, um vaso de flores ou um retrato. Sua visão de mundo coincidia com os gêneros tradicionais e não o contrário. Nada escapava ao artista e ainda assim ele repetia o mesmo tema diversas vezes, em variações imprevistas — parte da vocação de pintor, que assumiu até exageradamente como afirmam alguns; ele próprio abusando de uma falsa modéstia. Como pintor reconhecido, podia expandir e exibir seu ego à vontade, sem a timidez natural do caipira.

José Antonio da Silva se disse “pintor da vida rural”, o que de fato foi, sem saber que foi ainda mais longe, muito além das circunstâncias que porventura o teriam limitado — e o olhar moderno percebeu nesse artista a inventividade plástica da grande pintura.

José Antonio da Silva, apresentação:

 

Foi durante um almoço de confraternização de final de ano entre amigos e colegas do mercado da arte que surgiu a ideia de organizar uma exposição individual do artista José Antonio da Silva. Ao longo da conversa foram levantados nomes que mereceriam um novo olhar do mercado e cujo lugar na história da arte brasileira de- veria ser revisitado. Eis que surge, dentre os nomes mencionados, José Antonio da Silva, artista que, na opinião de todos à mesa, merecia nova carga de visibilidade.

 

Notado pela primeira vez em 1946 por um grupo de intelectuais durante uma mostra coletiva no interior de São Paulo, em São José do Rio Preto, José Antonio da Silva teve longa trajetória como pintor e desenhista e já expôs seus trabalhos em importantes instituições nacionais, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu de Arte de São Paulo (MASO), bem como em eventos internacionais de grande porte, sendo a Bienal de Veneza um deles. Além disso, contribuiu com o pensamento nacional, de maneira sem igual, apresentando obras repletas de denúncias sociais contundentes e retratando temas que são até hoje atuais, como o desmata- mento, a queimada de nossas florestas e o avanço desenfreado da agropecuária no país.

 

É certo que José Antonio da Silva merece figurar em uma exposição de peso, que dê conta da variedade de sua produção e da riqueza de sua imaginação. Uma bela e impactante mostra, que exponha obras de sua melhor fase, para que uma nova geração de colecionadores possa admirar e se aprofundar no universo mágico deste pintor que retratou tão bem o mundo que enxergava diante de si.

Ao apresentar lado a lado nossas coleções de obras do artista, acreditamos ter reunido um conjunto significativo e representativo do que há de mais momentoso em sua produção, desenvolvida entre as décadas de 1940 e 1970. Este catálogo, elaborado com muito carinho e cuidado, pretende servir como referência e regis- tro do importante legado artístico de José Antonio da Silva.

 

Cacá Nóbrega e Paulo Kuczynski.

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